SOBRE OS ROLEZINHOS NO SHOPPING, OS CONCEITOS DE ORDEM, DESORDEM E PUREZA...
Pois é, uma multidão de jovens da periferia invadem um shopping em São Paulo. Finalidade? Passear no templo do consumismo, inserir-se no meio da classe média, sair da invisibilidade social, protestar contra o preconceito, a segregação social, etc. Infelizmente alguns partiram para a prática de furtos, danos, etc. Em relação a esses, nenhuma palavra de aceitação. Não estou pactuando com esse tipo de conduta criminosa. Não é disso que se trata a minha reflexão.
Estou falando da essência do movimento, da subversão da ordem e sobre isso queria escrever, no momento em que tomo conhecimento de que alguns shoppings de SP conseguiram liminares para proibir as aglomerações (deste tipo de gente, é óbvio...).
Preciso resgatar o que há muitos anos, em 2003 acredito, escrevi no meu livro Introdução Crítica ao Processo Penal (depois incluído no manual Direito Processual Penal) que:
A visão de ordem nos conduz, explica BAUMAN, a de pureza, a de estarem as coisas nos lugares justos e convenientes. É uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. O oposto da pureza (o imundo, o sujo) e da ordem são as coisas fora do seu devido lugar. Em geral, não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, senão o estar fora do lugar, da ordem. Exemplifica o autor com um par de sapatos, magnificamente lustrados e brilhantes, que se tornam sujos quando colocados na mesa de refeições. Ou, ainda, uma omelete, uma obra de arte culinária que dá água na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro.
O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, principalmente num país como o nosso, em que vira notícia no Jornal Nacional o fato de um grupo de favelados ter descido o morro e invadido um shopping center no Rio de Janeiro (escrevi isso em 2003!). Ou seja, enquanto estiverem no seu devido lugar, as coisas estão em ordem. Mas, ao descerem o morro e invadirem o espaço da burguesia, está posta a (nojenta) omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organização do ambiente.
Explica BAUMAN que ordem significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis.
Ora, tal império da ordem só pode ser fruto do autismo jurídico e de uma boa dose de má-fé. A falácia do discurso salta aos olhos, pois tal ordem, numa sociedade de risco como a nossa e com um altíssimo nível de complexidade, só pode decorrer do completo afastamento do direito da realidade e/ou da imensa má-fé por parte de quem o prega. Não sem razão foi o argumento largamente utilizado por programas políticos totalitários, como o nazismo (pureza de raça) ou mesmo o comunismo (pureza de classe).
Mas cada esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada ordem gera seus próprios estranhos. Isso se reflete muito bem na tolerância zero para o outro e tolerância dez para nós e os nossos. E o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista. Os deixados de fora são os consumidores falhos e, como tais, incapazes de serem indivíduos livres, pois o senso de liberdade é definido a partir do poder de escolha do consumidor. Eis os impuros, os objetos fora do lugar.
Portanto, tirando obviamente os que praticarem condutas criminosas, assisto preocupado a judicialização e até criminalização desta suposta des-ordem. Enquanto estiverem nas favelas, nas vilas, tudo está em ordem. Quando subirem para o asfalto e invadirem o shopping, é desordem, liminar neles, cacetete e direito penal. A cena se repete, mais de 10 anos depois do meu primeiro texto, agora muito mais grave. Sigo pensando o mesmo. Mas estou bem preocupado com o que vejo...
O problema é bem mais complexo...